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A Grande Alma Negra da América

Blues, Reggae e Samba

Blues, reggae e samba são provavelmente as três mais fantásticas vertentes da musica popular da América contemporânea. De comum, bem mais do que uma linhagem ancestral negra.
O convite para estréia dessa mãe África no continente é no papel de escrava. Depois, faz sucesso como debêntures, mercadoria valiosa que será negociada e sistematicamente estocada como ativo circulante. Para os europeus, bem mais interessantes que almas negras, eram os braços fortes guardados sob o assoalho fedorento das galés. Quando chegavam vivos.
Mas o legado é de ritmos e melodias fortes e penetrantes. O encontro com as culturas nativas e com o lirismo europeu faz renascer a música da América.
Forte como o blues, que além de azul, também pode ser traduzido como melancolia e tristeza. Certamente, porque em suas origens nas plantações de algodão do sul dos Estados Unidos, escravos negros cantavam para sobreviver ao ritmo de trabalho que lidava com o sol como testemunha.
Era no canto que a alma negra ousava se rebelar, inconformada (eu aprendi que esta palavra pode ser teu último sinal de sanidade), teimando, negando enrijecer. Atiravam-se ao trabalho imolados por cânticos misericordiosos. Eram possuídos de um tal delírio que afrontava a alma resignada àquelas duras privações.
Não era apenas o desconforto. Era um vazio. Ainda que não houvessem razões para se viver naquela filial do inferno, estava no canto melancólico a cadência do trabalho, que por sua vez alimentava a esperança com preces à Deus e as pueris coisas do amor.
Isso é ainda hoje a melhor tradução do blues: querer algo que não tem.
Do campo para as igrejas e das igrejas de volta a cidade até por fim explodir nas rádios como a rock, a mais rentável versão das canções negras trouxe muitas faces e estilos.
Mas a razão do vigor, que mantém ainda hoje, esta lá na sua origem. Nos primitivos batuques africanos.
Esta no fervor do soul, nos encontros com Deus dos spiritual e gospels, no balanço do rhythm and blues, na sofisticação harmônica do jazz, todos fragmentos do DNA da semente do rock que, por ironia, lhe recebeu a alforria nas rádios sendo gravado por vozes brancas.
Foi um preço pequeno para o inevitável. Muddy Waters, Memphis Slim, Howlin Wolf, Bo Diddley, B,B. King , Chuck Barry e Ray Charles martelaram os ouvidos dos jovens da classe média americana e inglesa. Por tabela viria o resto planeta.
Londres dita o tom da modernidade no início dos anos 60, consumindo de maneira ávida estas novidades da América. Praticamente todos os grupos de música jovem que surgem amam, idolatram o blues.

O Som da Liberdade

Mas entre os domínios do grande império, em que o sol nunca se põe, esta lá a Jamaica, uma pequena ilha do caribe, um ex-reduto de piratas de sua majestade. A Jamaica era apenas só mais uma base para abastecer de rum os piratas comandados por Morgan antes de saquear galeões espanhóis que por sua vez já haviam saqueado ouro e prata dos não cristãos nativos da América.
Enfim, agora eles, os rastamans, estavam também nos subúrbios da capital do império tão acomodados como em Kingston. Morando entre os desempregados e os bêbados. Mas um subúrbio de Londres era próximo o suficiente do olho do furacão para vir à tona, desmoronando séculos de isolamento.
Peter Tosh, Bob Marley and The Wailers e Jimmy Clif formam a trilogia impagável do reggae, uma página de ouro na história musical da América.
Suas guitarras são obreiras messiânicas que hipnotizam fiéis para pregação. Bob Marley faz músicas como quem constrói templos. Suas platéias irão receber a mensagem como uma denúncia mística ora da miséria, ora da corrupção e opressão, ora os tormentos do coração e da alma.
É no olhar temente a Deus, que mais uma vez se espera pela redenção. Desta vez sob o julgo de JHÁ, supremo sobre todos os rastamam. ELE vive em cada criança para que a justiça finalmente triunfe ante toda iniqüidade que corrói a terra.
Como novos astros da música internacional, propagaram o sonho do êxodo do povo negro para voltar à mãe África. Tiveram um fim trágico, mas ajudaram e muito, a mudar o destino dos que vivem na ilha. A Jamaica é hoje um paraíso tropical que vive do turismo graças ao reggae. A ironia neste caso é que foi Bob Marley quem criou o primeiro jingle apresentando a ilha a pedido de um Primeiro-Ministro.
Fora um tormento viver na colônia na época da escravidão e depois dela, sobreviver aos guetos. Até a chegada do revolucionário “songs off freedon”

Atrás da Batida Perfeita

É através do samba, enfim, que as tais leis de semelhanças se firmam abaixo do equador.
A cultura africana chega girando o lucrativo comércio negreiro de europeus para o trabalho escravo nas fazendas. De novo o que resta são muitos dramas e uma esperança mística sublimada nos cantos religiosos. Diferente do que aconteceu no norte, aqui o sincretismo religioso permite que a plural herança negra seja preservada.
Não impede que os guetos da Jamaica e a segregação nos EUA virem favelas no Brasil. E que uma leitura comercial branca também seja a lucrativa entrada nas grandes gravadoras.
Os morros cariocas e a Bahia são o berço do samba. Depois, o caldeirão de sua fusão com outros ritmos.
Novos baianos, cariocas, gaúchos e paulistas vão temperando o caldo musical que um dia viria conquistar todos os aeroportos do mundo através da Bossa Nova.
Moraes Moreira, Jorge Bem, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Paulinho da Viola, Dorival Cayme, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Adoniran Barbosa, Chiquinha Gonzaga, João Gilberto e Chico Buarque.
Por hora Nelson Cavaquinho é Robert Johnson e Clementina de Jesus é Billie Holliday.
O país também tem sim suas versões para the songs for freedom.
Os refrões musicais também percutem uma revolução cultural, mas é uma pragmática versão ocidental.
Não foi exatamente na marra como no norte, mas talvez no fim não valha mesmo tanto a pena ser igual a eles em tudo.
O Samba cresceu generoso e continuará a cumprir seu destino de traduzir a alma brasileira. Por hora, flui por outras trilhas.
Como naqueles versos cantados por Bete Carvalho, o samba, antes do suspiro derradeiro, terá deixado marcado definitivamente o compasso do coração brasileiro.

Comentários

Anônimo disse…
achei super legal a leitura que fizestes dos ritmos e a relação com a história do negro.
penso que tens uma identificação muito boa com as coisas da
raça,certo?

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